terça-feira, 2 de junho de 2009

O medo de Laura

Na noite de quinta ou quando há pouco é sexta-feira, ninguém está de pé. A não ser que madrugue muito muito cedo, sofra de insonia ou seja tão torpe ao ponto de frenquentar lugares agrurentos como a rua da guia, s/n no meio da semana, eis nosso lar. E sim, estamos abertos nas quintas também porque, embora o movimento da casa não chegue à meia dúzia de marmanjos, é para o mau caratismo que trabalhamos.
Na quinta em questão, quatro ou cinco meninas divertiam os dois únicos rapazes que nos visitavam, um era o varãozinho, o outro era o conde de Florestia. Eu estava dividindo um charuto com Virgínia à janela porque particularmente não me apraz o cheiro de bode velho que o conde exala, muito menos à madame. Também discutiamos, como bons sócios, sobre a garota nova que chegara, Clementina. Fugitiva do Império Turco, ela não dizia uma palavra do português e para entendê-la, cabia às outras putas o trabalho de traduzir.
Quando a chuva começou a cair, apagamos o cigarro e decidimos abrir outra garrafa de vinho para esquentar. Enquanto ia à cozinha, senti que Laura me olhava numa expressão medonha, até descruzou as pernas e calçou os sapatos. Então levantou do divã e foi só o que vi porque cheguei ao outro cômodo. O vinho cheiroso me hipnotisava e o som dos saltos de Laura no tabuado da escada me fizeram rir e pensei "Finalmente o varão conseguiu levar nossa estrela para a cama".
Mas não foi nada disso que aconteceu porque em seguida o homem veio a mim atordoado, perguntando qual era o problema com aquela mulher como se eu soubesse lidar com mulheres. Tinha que saber, por isso subi as escadas e fui ter com a minha puta.
Laura tinha seu próprio quarto, d'ouro e carmim como o resto da casa. Não bati na porta, não havia porta fechada para se bater. Havia o cheiro de setim novissimo, o cheiro de velas novas, cheiro de quando o escuro do quarto de Laura ia embora e havia aquela moça de olhos tristes que tremia para acender mais uma vela. Ela não chorava por fora, mas enrolava os cachos no dedo anelar, o que significa que estava chorando por dentro.
"Volte ao trabalho" disse-lhe rígido.
"Não volto"
"Que há, menina, não seja folgada"
"Sou o que quiser, agora cale a boca e vá limpar a bunda do seu varãozinho"
Laura não era tão má, só quando lhe era conveniente. E se lhe era conveniente agora, algo estava muito errado. Franzi o cenho.
"Está bem, qual o problema?"
"Tenho medo do que me disse a macumbeira que mora na ponte" ela falou lombrada.
"Que isso tem a ver com seu trabalho?"
"As coisas vão mudar, Abelardo, a nossas coisas todas mudam a partir de hoje"
"Foi isso que aquela preta te falou?"
"Vá embora, avise a Virgínia que hoje não trabalho mais"
"As coisas não são assim, menina" E puxei-a pelo braço até o salão onde tudo parecia leve, inclusive nós que agora fingíamos.

Trovejou enquanto nos reuníamos aos homens da sala. Um barulho do outro lado da janela era surdo e quase não escutamos nada. Cassandra desprendeu-se do Conde e me contou que achava que alguém queria entrar. Respondi que mandasse entrar e, ao fazer isso, Laura segurou minha mão com força para machucar. Confessou que ainda estava com medo.

sábado, 18 de abril de 2009

Para passar o tempo (durante o trabalho)

As vezes a gente se perde.
Eu, por exemplo, me perdi no trabalho, criei tantas facetas, tantos mistérios, tantos mecanismos-de-defesa-contra-o-pudor que acabei assim, despudorada. ou sei lá, acabei assim, não sabendo mais.
Mas o que importa isso a abelardo? Para ele eu sou a alavanca monetária. Isso que importa.
Mas o que importa isso a virgínia? Ela possui o poder. mais, ela mesma é a representação do que é, poder. Pura intimidade (que todos têm).

Veja bem, eu vou falar da minha vida e acabo falando deles dois.
Pois bem, é isso.
Ainda bem, que pelo menos me dou conta.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A GENTE VIVIA NUM PALÁCIO

A gente vivia num palácio. De prata, pernas, música dos séculos passados, rendas, de vermelho e champagne e de luxúria. Ah, sim, luxúria poderia ser o nome do nosso reino. Era quase um reino. Tínhamos nossos próprios seguidores e leis, mandávamos em tudo. Éramos mimados e fogosos como adolescentes nobres de Antiga Borgonha. Eu, por exemplo, achava que não se podia ser mais feliz. Só que Laura era ingrata. Não lhe bastava ser a mais desejada, a mais esperada, a mais rica, a melhor dançarina... Não! Ela não gostava de nada. Era a única puta que nunca foi minha, a única que nunca piscava para mim, a única que nunca aceitou presentes meus ou me visitou no quarto ou sequer chamou meu nome em voz alta. Todavia, eu sabia que ela me amava porque eu a amava também. Então, partiu. Partiu de sua própria vontade e não disse nada a ninguém porque nunca lhe convinha falar nada pra ninguém em hora alguma.

Virginia, por sua vez, sempre soube de tudo. Não que Laura tivesse lhe falado algo, mas porque conhecia sua amiga e esperava tal reação. Tanto foi que a própria Virginia, chorosa há vários meses, me comunicou que Laura voltaria ao palácio. Disse-me que soubera através da negra do rio que tudo via e eu não pude descrer ou ficar mais feliz.

Foi quando resolvi trocar todas as lâmpadas da casa, lavá-la com calêndula que era seu cheiro favorito, até arrumei sua cama e comprei-lhe um novo par de meias e tudo mais. Ansiava por Laura e seu sorriso radiante, junto a sua mania de acertar os laços no cabelo e sua inseparável cigarrilha cor-de-argila. Tão inseparável que fumava até quando dançava e quando dançava era quase nirvana.

Ah, mas Laura, quando voltou, ainda era ingrata e chegou de cara feia, sem cigarros, sem laços no cabelo, como se tivesse vergonha de ter voltado. Mas que decepção, nós que nos amávamos tanto... Nós que a amávamos tanto! Nós! Nós que éramos sua família e sentimos sua falta. Pois Laura não olhou para ninguém, nem mesmo foi ter com o varão. O olhar de Laura era o olhar de quem queria fugir mais uma vez.

Mas lembre-se, não fui quem te contou tudo isso, não foi sequer outro homem.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Amor por Odor

Ela tinha um olhar arremetido quando cheguei. Pegou-me num júbilo de saudade que nem mesmo vez para reação eu tinha.
Eu a olhava, ela me olhava. Eu desviava e ela ainda assim me olhava de volta. Sim, eu fui Laura, mas agora já não importava meu nome. Todos sabiam quem eu era.
As pessoas eram as mesmas, mas os ares diferentes. As lâmpadas eram as mesmas, mas as luzes diferentes. E o mesmo com as dançarinas e as danças, a sedução e o gozo. O que mudara? Parece que ao sair do cabaré eu havia também saído de uma casinha de onde ficara observando a rua. Observando, assim como todo mundo faz.

Se eu mudara por voltar, não poderia dizer por quê. Sonharia. Um sonho num prostíbulo se confundiria com um delírio da profissão.
Percebiam pelo cheiro quando costurava um caminhar desprezível ao meio do salão. Senti a pulsação dos corações-membros dos homens me acompanhando no lugar do olhar. A noite estava por começar, assim.
Mas ela ainda me tinha um olhar arremetido e, agora, mordia a boca sem perceber.
Não se resiste ao olhar dela. Menos ainda se resiste à boca.
No entanto, não a respondi como ela queria. Não mais o sabia.

Maçã pecaminosa é o cheiro que sente a dama nos sapatos da corja. Ela era Virginia.

Por Laura Valente

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

volver

A volta de laura foi marcada por muitos sorrisos, contemplando os rostos maliciosos, dourados de tanto brilho, mas algo tinha mudado.
Laura já não cantava e encantava do mesmo jeito, não sorria do mesmo jeito e nem dançava como antes, mas ainda sim era a estrela da casa. Quando me viu, nem me beijou, como eu esperava, me olhou com olhos baixos e impressionados com a vida. Laura se sentia estranha, como se tudo aquilo não fosse seu, como se aqueles ares fossem outros, as pessoas outras, mas ela sabia que quem havia mudado era ela. Uns dizem que no caminho de volta para a minha casa, embaixo de uma árvore, muito antiga que fica situada na ponte dos desatinos, surgiu um velha, uma advinha, com um misterioso cheiro de cravo e canela, com algumas pulseiras de ouro e saia de seda amarela. Essa velha mudou completamente a sua história.

Mas isso, já não sou eu - Virginia - que devo e nem vou lhe contar.